quarta-feira, 18 de março de 2015

Sobre o Falhanço da Liderança

Por Payam Akhavan.


O bem-estar da humanidade, a sua paz e segurança, são inatingíveis, a não ser que, primeiro, se estabeleça firmemente sua unidade. (Bahá'u'lláh, SEB, sec. CXXXI)

Bahá'u'lláh ensinou que um padrão comum de direitos humanos deve ser reconhecido e adotado. Na perspectiva de Deus todos os homens são iguais; não há distinção ou preferência por qualquer alma no domínio da Sua justiça e equidade. ('Abdu'l-Baha, The Promulgation of Universal Peace, p. 181)

(Este artigo é uma adaptação do discurso do Prof. Payam Akhavan na Cerimónia de Abertura da McGill University Model United Nations em 22 de Janeiro de 2015, em Montreal, no Canadá.)

Muita coisa mudou no mundo durante a última década, mas o que permanece igual é a importância vital das Nações Unidas, assim como a necessidade imperativa de um fórum global onde os líderes mundiais possam reflectir, fazer diplomacia e encontrar soluções para os graves desafios enfrentados pela humanidade.

Winston Churchill proferiu a famosa frase de que "a diplomacia é a arte de dizer às pessoas para irem para o inferno, de tal maneira que elas nos perguntem qual é o caminho." O actor e comediante americano, Will Rogers, formulou outra definição em 1930: "Diplomacia é a arte de dizer «Cãozinho bonito!» até se encontrar uma pedra"

Qualquer que seja a definição de diplomacia, todos podemos concordar que o debate e o diálogo são preferíveis à guerra e à violência.

Hoje, o mundo que testemunhamos reflecte a sua liderança, ou melhor, o falhanço da sua liderança. O ódio, a guerra, o terrorismo, o genocídio, a ganância, a pobreza, a doença, a fome, o envenenamento do nosso planeta, todas estas aflições, todas estas fontes de sofrimento humano, são apenas um espelho que reflecte as escolhas feitas por aqueles que estão no poder.

Comecei a minha carreira nas Nações Unidas, com pouco mais de vinte anos. Sair da universidade para uma zona de guerra foi um despertar violento. Uma coisa é para falar sobre os ideais numa sala de aula, e outra é ver a realidade do sofrimento humano. Eu tinha-me formado na Harvard Law School e estava confiante que tinha todas as respostas. Acreditava na missão da ONU. Acreditava nos direitos humanos. Sabia tudo o que havia para saber sobre direito internacional.

Capacetes Azuis na antiga Jugoslávia
Quando rebentou a guerra na Jugoslávia em 1991, eu estava entre os primeiros no terreno. Era investigador idealista dos direitos humanos, pronto a testemunhar os horrores da "limpeza étnica" e do genocídio. Lembro-me da emoção ao colocar o meu capacete azul das Nações Unidas pela primeira vez, de voar nos helicópteros brancos e nos aviões de carga da ONU para Vukovar e Sarajevo, de fugir às bombas e aos tiros e de viver no limite. Mas nenhuma das minhas qualificações académicas, nenhuma quantidade de auto-confiança profissional, me tinha preparado para as cenas horríveis que iria testemunhar nos anos que se seguiram.

Vi belas cidades reduzidas a escombros, famílias sem tecto deambulando no frio do inverno à procura de comida e abrigo, a dor indescritível dos sobreviventes de violação e tortura nos campos de concentração, e, claro, as imagens inesquecíveis de mães chorando e olhando para os seus filhos em valas comuns. Foi uma experiência profundamente mortificante, sair da aprendizagem teórica e da ambição profissional, para sentir a realidade íntima das pessoas que deviam ser protegidas pela ONU. E depois, ir das aldeias da Bósnia onde vi famílias que tinham sido queimadas vivas, para as reuniões do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, onde o eufemismo diplomático e as resoluções cuidadosamente formuladas limpavam realidades desagradáveis e criavam a ilusão de progresso.

O pior foi em 1994 quando, apesar de repetidas avisos de que um genocídio estava prestes a acontecer, o mundo abandonou o povo do Ruanda. Em vez de protegerem civis, a ONU retirou as suas forças de paz, sabendo o terrível destino que aguardava aqueles que tinham sido abandonados. Enquanto diplomatas justificavam as suas políticas cínicas com terminologia sofisticada, quase um milhão de civis eram exterminados.

A minha querida amiga Esther Mujawayo entrou em pânico quando recebeu as notícias de que muitos dos seus entes queridos tinham sido assassinados. Sem ninguém para ajudá-la, desatou a correr freneticamente por Kigali, para tentar salvar as vidas das suas três meninas. Encontrou soldados europeus que tinham sido enviados para evacuar os estrangeiros e os seus animais de estimação. Viu-os a apanhar cães e gatos e a colocá-los nos camiões militares que levariam diplomatas e trabalhadores humanitários para o aeroporto de onde seriam evacuados para a Europa.

Num momento de desespero total, ela deu a sua filha recém-nascida a um dos soldados. Pediu-lhe para levar a menina para a Europa e dá-la para adopção a uma boa família. Foi o acto de uma mãe desesperada, tentando salvar, pelo menos, uma das suas filhas da perspectiva da morte iminente.

O soldado recusou levar a menina. Explicou que tinha ordens para evacuar apenas os estrangeiros. Quando contou esta história Esther tinha os olhos cheios de lágrimas, e disse: "A vida de um cão europeu era mais importante do que a vida da minha filha."

Há algo tão intenso, tão gritante, no contraste entre a história de Esther e as resoluções e deliberações vazias que a ONU estava adoptar nesse mesmo momento. É uma espécie de caricatura daqueles líderes presunçosos que recordam o Holocausto dizendo "nunca mais" e simultaneamente permitem que esse mal extremo se manifeste diante dos nossos olhos. Somente quando temos esta visão íntima do sofrimento podemos começar a apreciar o significado da verdadeira liderança. Só depois de perceber o contraste entre as declarações de princípios nobres entre os poderosos e a dura realidade dos oprimidos, podemos começar a ter uma conversa honesta sobre o futuro da ONU e a perspectiva de um sistema de governo mundial.

Não podemos reduzir o sofrimento humano a estatísticas, a declarações solenes e a sentimentalismos superficiais. As vítimas não são estatísticas. Atrás de cada vítima, há um nome. Atrás de cada vítima, há uma história. Há uma mãe e um pai, um irmão e uma irmã, um melhor amigo e um colega de trabalho. Atrás de cada vítima há um universo de emoções e relações, dilacerado pela violência, destruído para sempre.

Quando nos sentamos e deliberamos sobre os problemas mundiais nos corredores do poder, e falamos sobre esses problemas numa linguagem anti-séptica e politicamente correta, numa terminologia jurídica, e com os procedimentos burocráticos, criamos um universo auto-suficiente. Ficamos cegos para a contradição entre a nossa auto-imagem virtuosa, e nossa falta de compromisso; a contradição entre a nossa vontade de fazer um discurso sobre a moralidade, e nossa falta de vontade de pagar um preço por isso.

----------------------------------
Texto Original: On the Failure of Leadership (bahaiteachings.org)

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Payam Akhavan é professor de Direito na Universidade Internacional McGill, em Montreal (Canadá) e professor convidado na Universidade de Oxford (Reino Unido). Já trabalhou como procurador da ONU em Haia, e também trabalhou com as Nações Unidas sobre os direitos humanos na Bósnia, Camboja, Guatemala, Ruanda e Timor Leste.

Sem comentários: