segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Porque sofremos?


Quando olhares ao teu redor com olhos perspicazes, notarás que nesta terra de pó todos os seres humanos sofrem. Aqui nenhum homem encontra descanso como recompensa por aquilo que fez em vidas passadas, nem há ninguém tão abençoado que pareça estar a colher o fruto de uma angústia de tempos idos. E se a vida humana, com a sua existência espiritual, estivesse limitada a este período terreno, qual seria então o fruto da criação? De facto, quais seriam os efeitos e os resultados da própria Divindade? (‘Abdu’l-Bahá, Selections from the Writings of Abdu’l-Baha, p. 184)
Para que serve o sofrimento? Qual a sua origem? Qual a sua utilidade? Porque parece ser tão brutal e aleatório?

Questões como estas são tão antigas como a humanidade. E as sucessivas explicações que filósofos e teólogos têm apresentado sempre foram alvo de muitos e prolongados debates. Uma coisa parece certa: o sofrimento é inerente à condição humana. Por outras palavras, todo o ser humano experimenta o sofrimento em algum momento na sua vida.

Todas as grandes religiões mundiais procuraram apresentar explicações para a existência do sofrimento. Algumas afirmam que todo o sofrimento faz parte do processo de desenvolvimento da alma no seu caminho em direcção ao Criador. E acrescentam que mesmo que nesta vida não consigamos ver algum benefício, no decorrer da nossa existência encontraremos algum benefício resultante desse sofrimento. Vejamos de forma abreviada o que dizem as grandes religiões mundiais sobre o assunto:

  • O Hinduísmo considera o sofrimento dos indivíduos num contexto mais amplo de um ciclo cósmico de nascimento, vida, destruição e renascimento. A maioria dos hindus vê o sofrimento como uma punição pelos pecados cometidos nesta vida ou em vidas passadas. Mesmo uma pessoa aparentemente inocente que não se libertou do mau karma de vidas passadas pode sofrer essa punição.
  • Para a maioria das escolas Budistas, toda a vida é sofrimento causado pelo apego às coisas mundanas. Este apego, que pode assumir a forma de ganância, ódio e ignorância nesta vida e em vidas passadas, pode regressar como mais sofrimento (karma), a menos que seja mitigado. O sofrimento não é necessariamente um castigo divino, mas sim algo que deve ser superado através do desprendimento em relação a objectos e relacionamentos materiais.
Crianças num campo de concentração
  • O Antigo Testamento contém algumas histórias onde se descreve que o sofrimento se deve à fraqueza na devoção a Deus. Muitos Judeus acreditam que parte do sofrimento também se deve ao livre arbítrio que Deus concedeu aos seres humanos, e que o Seu propósito ao permitir o sofrimento dos inocentes deve ser bom, apesar de misterioso. Durante muitos séculos, o livro de Job marcou profundamente a visão judaica sobre o sofrimento e mais recentemente, após o Holocausto o tema voltou a ser profundamente debatido por vários pensadores judaicos.
  • No Islão, o sofrimento - suportar a dor ou uma perda - é um caminho na submissão à vontade de Deus. Algum sofrimento é obra de Satanás ou é trabalho dos seus associados no mundo dos espíritos (os “jinn”) e é permitido por Deus como um teste à humildade e à fé. Muitos Muçulmanos acreditam que o sofrimento e a adversidade fortalecem a fé pessoal, e também que a dor leva muitas vezes ao arrependimento, à oração e às boas obras.
  • No Cristianismo, o relato sobre Adão e Eva no livro dos Génesis foi adoptado durante muitos séculos como uma justificação da existência do sofrimento. Tipicamente, acreditava-se que teria existido um passado de perfeição, no qual os seres humanos teriam caído em pecado. Hoje todos seríamos pecadores desde que nascemos. Jesus Cristo teria surgido para nos redimir dos nossos pecados, e os frutos da vida de cada ser humano podem levar a pessoa à condenação eterna ou a alcançar a salvação.
Hoje muitos cristãos consideram que o relato da criação é simbólico. Os conceitos de “queda” ou “condenação eterna” são considerados como expressões mitológicas de um processo de tomada de consciência. Mas apesar dessa nova interpretação, ainda existe um número significativo que acredita na história de Adão e Eva como uma verdade literal.
Este breve resumo das várias explicações e justificações para a existência de sofrimento nas principais religiões do mundo apenas toca superficialmente um dos debates mais profundos e persistentes da humanidade.

No século XVII, o filósofo alemão Leibniz apresentou o conceito de Teodiceia, no qual tentava demonstrar que a presença do sofrimento no mundo não entra em conflito com a bondade de Deus. Leibniz acreditava que o sofrimento trazia consigo um bem maior, ou impedia um mal ainda maior; por esse motivo, dizia ele, vivíamos no “melhor mundo possível”.

Cem anos mais tarde, Voltaire rejeitou frontalmente o conceito de Teodiceia, dando como exemplo o terramoto de Lisboa em 1755 onde morreram milhares de pessoas. Para este filósofo francês, o sofrimento surge de forma aleatória, brutal e injusta, parecendo imerecido e excedendo tudo o que seria expectável.

Também durante o Iluminismo, o filósofo escocês David Hume recuperou as antigas questões de Epicuro: “Ele deseja impedir o mal, mas não é capaz? Então não é omnipotente. Ele é capaz, mas não deseja? Então é malévolo. Ele é capaz e está disposto? Então de onde vem o mal?”

Após muitos séculos de debates teológicos e filosóficos, as questões permanecem: Se Deus é perfeito, porque é que não vivemos num mundo perfeito? Considerando a realidade do pecado e do sofrimento, será que Deus existe? Se é necessário que exista o sofrimento, porque é que ele não surge de forma proporcional e justa? Porque é que Deus permite o sofrimento de pessoas inocentes, especialmente as crianças? Será que foi Deus que criou o sofrimento? Onde está Deus no meu sofrimento?

Nesta série de ensaios, vamos olhar estas questões com objectividade e ver se podemos encontrar algumas respostas satisfatórias. Vamos explorar a perspectiva Baha'i sobre o sofrimento – uma perspectiva única entre todas as grandes religiões do mundo - e examinar a sua relação com a questão profunda 'Abdu'l-Bahá coloca: " E se a vida humana, com a sua existência espiritual, estivesse limitada a este período terreno, qual seria então o fruto da criação?"

-----------------------------------
Versão em inglês: Why Do We Suffer? (bahaiteachings.org)

Sem comentários: